sábado, 23 de janeiro de 2010

Trechos do livro O POLVO

LUCAS

Lucas trabalhou pela parte da manhã na véspera do Natal. Recebeu seu salário, férias e tudo o que lhe era devido. Estava de férias e não sabia em absoluto o que faria com o tempo que teria a partir daquele momento. Não que exatamente isso o preocupasse. Jamais fazia planos. Custava-lhe já o imediato do tempo, não desejava pensar no dia de amanhã. Tinha muito tempo para nada fazer. Olhar fixo, sem rumo. Só com sua ausência. Depara-se com as vitrinas das lojas, lotadas nesta época do ano. Pessoas com pressa, com pacotes de presentes. Ruas, bares, shopings repletos. Papais-noéis estúpidos com suas máscaras assustadoras. Músicas natalinas se confundem com as buzinas histéricas dos automóveis.
Algo o prende. Uma loja de brinquedos. Buscou algo. Não sabia exatamente o que, mas o fascínio cresceu em busca de uma resposta. Seus olhos escuros percorrem os objetos expostos. Ali estava! Era uma boneca. Uma boneca pequena de longos cabelos louros, exatamente iguais àquela que ele comprará à Ângela há muito tempo atrás. Nem lembrava quando, mas sabia que fora há muito tempo.
E o tempo retira as cascas da antiga ferida. Lucas sangra por dentro, mas seu rosto é impassível. A dor cresce e as recordações surgem de forma vertiginosa.
Esquecer..Esquecer, isso é tudo.
Hoje tem dinheiro e pode se dar ao luxo de beber algo de qualidade. Nada de cigarros baratos. Talvez até comprasse um “pó” de qualidade. Quem sabe?
E assim, Lucas segue sem rumo certo. Para em qualquer bar. Bebe durante horas, absorto em pensamentos desconexos. Pensa em Heitor. Amava Heitor. Amor calmo, simples que nada exige que nada pede. Heitor era puro como uma criança. Ele era um oásis em meio ao deserto árido em que Lucas vivia. Não queria que Heitor sofresse, pensará em se afastar. Mas era Heitor quem acabava por lhe procurar. E mesmo Heitor vendo a aberração que Lucas se tornará, ele o amará. Isso despertará em Lucas um sentimento que lutará em destruir durante anos. Gostava de estar com Heitor. Abrirá seu coração. Falará da sua vida, dissera sobre suas idéias e quando percebeu estava envolto em uma teia de relação de cumplicidade e afeto que o punham em desencontro consigo mesmo. Ele, Lucas, odiava sentir-se preso a algo ou algum sentimento qualquer. Heitor começará a lhe tirar a paz da inexistência.
Amo, logo sou. Amo, logo existo! Lucas desejava não ser.




Perdi tua voz, perdi meu mundo... Não posso ver sem o teu olhar
Teu silêncio me disse adeus...Que eu ñ quis compreender, que ñ quis aceitar.
Mas o tempo devorou minhas reservas...Tua distancia cavou minha sepultura
Já não me reconheço...Estou mutilado de forma severa. Minha dor é o limite que está além do que posso suportar.
Acreditei que pudesse seduzir tua alma e ñ percebi que estava refém das redes da minha própria conquista. Não fui eu quem te aprisionou...Já estava eu, além do destino, preso a tua renúncia proclamada. Deixa então, agora que eu chore todas as lágrimas, todas as dores que tua rejeição provocou em mim...Ferido, doente de uma saudade louca, que te busca nas coisas mais banais. Que te relaciona nas coisas mais triviais...Estou assim, suspenso...Em desordem. Sou um ser das profundezas. Forjado nas caldeiras em fogo e brasa. Metais cortantes, que ultrapassa a carne crua num corte vertical. Sangro todas as minhas dores, meus amores e meus temores, até que, no vácuo oco da necropsia, nada mais restem do que a total ausência de identificação. Aceito minha definição de ser indefinido. Não suporto o peso de um nome, ou número, sou além do que sou no exato tempo do agora. Sou passageiro, peregrino, naufrago em um mundo de mares negros e profundos...Sou parte da legião condenada ao abismo pq tomou consciência de si e da dimensão da morte e da vida...E não soube o que fazer com o que soube. Na desordem eu me estabeleço...Perco-me. Estar perdido, fragmentado é minha condição vital. A simbiose me esmaga com a força do concreto. Defendo o direito da contradição...Do caos e da dialética da morte. A vida que profana a morte dentro da estreiteza aguda de suas paredes frias...

Ruptura da minha própria solidão.

E quando a noite grande desabou sobre a cidade febril, Lucas voltou ao seu apartamento medíocre. Bêbado demais para ver o caos que o circundava. É na cama estreita que Lucas se esquece de quem é. Esquece que existe e deixa que os dias prossigam na mais completa indiferença.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Imagens

Imagens
Lembranças